Fundadora do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) e da Better Governance – consultoria especializada no desenvolvimento de projetos em governança corporativa (GC) visando a tornar mais eficazes o modelo e a estrutura de governança das organizações para criar e compartilhar valor de forma sustentável -, Sandra Guerra é uma verdadeira referência quando o assunto são conselhos de administração e seus desafios.
Além de ter fundado as duas instituições, ela é autora do livro “A Caixa Preta da Governança” e foi reconhecida, em 2024, com o prêmio Lifetime Achievement Award, da International Corporate Governance Network – ICGN, principal entidade global ligada ao tema.
Neste ano em que completa 20 anos de atividade, a Better Governance lançou, juntamente com o próprio IBGC, uma pesquisa a respeito da forma como os conselhos lidam com questões geopolíticas. E o tema, claro, não poderia ser mais atual, tendo em vista o cenário global de conflitos e, mais recentemente, as políticas tarifárias estabelecidas pelo presidente norte-americano, Donald Trump.
Nesta entrevista, Sandra Guerra aborda alguns aspectos da pesquisa e explica como os conselhos podem integrar em suas reuniões, de forma sistemática, a análise de temas ligados à geopolítica.

Associated News (AN) – A pesquisa mostra que cerca de 50% dos conselheiros e diretores discordam da existência de processos estruturados de monitoramento de riscos geopolíticos. O que impede os conselhos de institucionalizar esses mecanismos e quais seriam os primeiros passos práticos?
Sandra Guerra (SG) – A administração de risco geopolítico sempre esteve na matriz de risco de empresas que têm uma governança estruturada há mais tempo, com processos estabelecidos e que incluem o envolvimento dos executivos para preparar a matriz de risco, com o conselho monitorando essa matriz e seus indicadores regularmente.
O que ocorre é que, mais recentemente, os fatores geopolíticos passaram a ocorrer de forma simultânea e com fatos e eventos se dando numa velocidade muito acelerada.
Apenas para relembrar casos mais recentes, primeiro, tivemos o início da guerra da Ucrânia; depois, os eventos no Oriente Médio, na Faixa de Gaza e, por fim, depois da posse do presidente dos Estados Unidos, sua abordagem em relação a tarifas.
Esses fatos, como mencionei, têm ocorrido de forma mais acelerada e quase simultânea.
O ponto é que os conselhos estão discutindo essa questão de forma mais pontual, conforme estão tratando as questões e dificuldades do negócio. Por exemplo, fazer uma previsão para um ano em uma situação em que a variação cambial tem um peso enorme. Ou ainda quando a empresa vai realizar um investimento ou uma aquisição. Nessas situações, os conselhos têm discutido as implicações geopolíticas. Mas não ainda de forma regular ou estruturada.
Acredito que agora, com maior protagonismo do tema, dada a velocidade e simultaneidade dos eventos, os conselhos vão passar a ter um processo mais estruturado.
E quais são os primeiros passos práticos? Primeiro, assegurar que o planejamento estratégico, revisto anualmente, incorpore essa discussão de temas geopolíticos de maneira mais destacada. Ponto importante, claro, é o de que o grau de atenção ao tema dependerá do setor; empresas com maior exposição aos riscos e oportunidades geopolíticos terão, naturalmente, de trabalhar o assunto de forma mais estruturada.
Falamos, portanto, de aspectos como “embutir” a análise desses riscos e oportunidades de uma forma estruturada no planejamento estratégico e assegurar que as informações para basear essa discussão sejam robustas (se possível, obtidas de fontes externas confiáveis). Nesse aspecto, aliás, o uso de inteligência artificial será bastante oportuno, particularmente, para os setores mais influenciados pelos fatores geopolíticos. Por fim, é importante incluir a temática nas reuniões do conselho de administração que são realizadas ao longo do ano. Esses seriam os primeiros passos.
AN – A adequação de tecnologias como inteligência artificial foi apontada como frágil, com apenas 43% dos conselheiros considerando-as adequadas. Como acelerar a integração de ferramentas tecnológicas na análise de riscos geopolíticos no nível do conselho?
SG – A Inteligência Artificial vem sendo usada por muitas empresas de forma mais tática, para obter mais eficiência na ponta dos negócios. Por exemplo, para melhorar a abordagem ao cliente, obter informações de mercado para lançamento de produtos, acompanhar desempenho dos produtos e serviços e, mesmo, ganhos de eficiência em processos internos.
Por outro lado, empresas também começam a usar a IA para tratar e processar as informações para contribuir com seu “pensar estratégico”. De novo, em questões geopolíticas, isso se aplica, sobretudo, a empresas em que esses fatores têm maior peso.
Há, é claro, empresas que estão mais atentas a essa questão, seja porque os produtos e serviços que oferecem estão mais suscetíveis à geopolítica, seja porque a cadeia de fornecimento global também é impactada por esses fatores.
Nessas empresas há, sim, a possibilidade de obter informações com mais velocidade sobre os eventos que estão acontecendo e sobre a simultaneidade que um evento tem sobre o outro. Essa é a oportunidade de usar inteligência artificial de forma mais estruturada, voltada para o pensamento estratégico.
Um exemplo: uma empresa que atue na área de commodities internacionais com produtos agrícolas, insumos ou grãos, e que transporte para vários vários pontos do mundo esses produtos com muitos navios circulando diariamente; nesse caso, temos uma aplicação mais tática para entender quais os impactos, no mês que vem de, por exemplo um fato na Ucrânia ou em Gaza ou de um novo posicionamento do presidente americano. Já em um período maior, a IA pode “entender” esses tempos e movimentos da simultaneidade dos eventos e prover uma informação muito rica.
Acredito que a integração dessas ferramentas virá junto com o que respondemos na questão anterior; a ideia de criar um processo estruturado para obter informações mais robustas, levando em conta tanto as decisões relacionadas a desafios táticos quanto em relação ao longo prazo.
Acredito, aliás, que nas empresas mais impactadas isso já começa a ocorrer e vai acontecer cada vez de forma cada vez mais intensa.
AN – Há uma diferença relevante de percepção: mais de 68% dos conselheiros acreditam que uma interação eficaz com a diretoria tende a propiciar tomadas de decisões mais eficazes em relação ao contexto geopolítico, mas, entre os diretores, esse número cai para 55%. Como reduzir essa assimetria e garantir alinhamento na prática?
SG – Há, de fato, uma assimetria de percepção, mas que tende a ser diminuída na medida em que o tema passe a ser tratado de forma mais estruturada e seja “embutido” com maior protagonismo, tanto no planejamento estratégico quanto em resposta aos desafios e oportunidades que surgem no cotidiano do negócio, com o uso de uma base de informação maior, mais acurada e mais abrangente, ampliando os momentos dedicados à discussão. Isso, por sua vez, tende a criar uma maior simetria de visão e, portanto, a levar a um maior alinhamento entre diretores e conselheiros.
Naturalmente, é comum que os executivos, por estarem no dia a dia do negócio, tenham mais informação do que os conselheiros sobre qualquer um dos fatores do negócio – embora muitos conselheiros tenham vivência em multinegócios, em diversos setores e uma maior senioridade e isso contribua com a discussão.
AN – Enquanto 74% dos conselheiros se veem receptivos a visões externas, apenas 54% dos diretores compartilham dessa percepção. O que explica essa divergência e como institucionalizar a escuta de especialistas no processo decisório?
SG – Mais uma vez: a diferença de percepção entre conselheiros e executivos é comum e é natural que ocorra na interação cotidiana entre os dois grupos. Muitas vezes, o conselho percebe coisas da diretoria que a própria diretoria não entende de uma determinada maneira e vice-versa. Portanto, essa não é, a rigor, uma diferença que surpreende.
O ponto é que pessoas externas, sejam especialistas ou não, podem trazer vivências de outros mercados, de outros países e outras regiões do mundo, com uma perspectiva diferente, que “desafie” um pensamento que, eventualmente, esteja sendo desenvolvido no conselho em relação a determinados fatores geopolíticos.
Mesmo atores internos podem contribuir, especialmente em empresas que atuam em diferentes países. Trazer para o conselho a voz de quem está em contato direto com outros contextos amplia a compreensão sobre fatores e eventos geopolíticos.
Além disso, nas sessões de planejamento estratégico — e também em momentos específicos ao longo do ano — é valioso contar com especialistas ou líderes empresariais externos, trazendo experiências e perspectivas diversas para enriquecer a discussão.
Esse ingresso de informação qualificada fortalece a capacidade do conselho de analisar o ambiente, alinhar visões e tomar decisões estratégicas com maior segurança, reduzindo as incertezas inevitáveis do cenário atual.
AN -O relatório sugere evoluir para um modelo que combine monitoramento contínuo e uso de IA para antecipação de cenários. Quais barreiras culturais e de governança ainda dificultam essa transição nos conselhos brasileiros?
SG – A principal barreira é cultural: muitos conselhos ainda subestimam a necessidade de tratar fatores geopolíticos de forma estruturada e recorrente. Em empresas com baixa exposição internacional, discussões pontuais podem parecer suficientes. Mas, para aquelas com maior exposição — seja pela cadeia produtiva ou pelo modelo de negócios — é essencial incorporar uma análise regular e sistemática, embutida no planejamento estratégico e nas reuniões ao longo do ano.
Embora o tema já apareça de forma pontual ou em discussões informais do conselho, o desafio é transformar esse tratamento eventual em parte consistente do processo decisório. O receio de burocratização é natural, mas quando o assunto passa a ser integrado de forma contínua, ele enriquece as discussões estratégicas e oferece subsídios valiosos diante do ambiente de incertezas e volatilidade em que vivemos.