Francisco Mairlon passou quinze anos preso por um crime que não cometeu. Saiu, ao menos, com vida. Damaris Vitória não teve a mesma sorte. Ficou seis anos presa preventivamente, mesmo com câncer. Dois meses após ser absolvida, morreu. A morte não veio só do corpo, mas do cárcere que a negou como ser humano.
Esses casos não são exceções raras. São sintomas de um modelo de justiça que teme mais admitir o erro do que cometê-lo. No Brasil, errar é tolerável; voltar atrás, não. Quando o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios recorre da absolvição de Mairlon após quinze anos de prisão injusta, não cumpre função técnica. Repete um gesto: o Estado prefere parecer coerente a ser justo.
Essa preferência tem origem na formação. O jurista é treinado para afirmar, não para questionar. Em pesquisa de Sonnemans e van Dijk (2008), 162 participantes de diferentes áreas julgaram casos abstratos de incerteza. Os formados em Direito mostraram-se os mais propensos a condenar, aceitando a culpa com apenas 63,15% de certeza. A pedagogia jurídica produz convicção antes de reflexão.
O viés individual se amplifica ao encontrar as instituições. A dúvida, que deveria proteger o inocente, vira ameaça à autoridade. O processo se torna um fim em si mesmo. A máxima de Blackstone — segundo a qual é melhor absolver dez culpados a condenar um inocente — foi silenciosamente invertida.
O caso extremo dessa lógica está documentado. Wilton Dedge foi mantido preso por anos nos Estados Unidos mesmo após um teste de DNA provar sua inocência. O procurador que o acusara resistiu à anulação sob argumento de que a “finalidade” do julgamento valia mais que a verdade. Quando um juiz perguntou se mudaria de posição diante de certeza absoluta de inocência, a resposta foi direta: “Não, essa não é a questão”.
No Brasil, o mesmo padrão se manifesta em duas faces. A primeira é o Ministério Público. O recurso contra Mairlon não é insistência processual: é escolha de prioridade. Mas um Ministério Público que existe apenas para punir trai sua função constitucional: fiscalizar a lei, promover justiça, defender direitos. Inclusive o de não ser injustamente condenado.
A segunda face é o Judiciário. O Ministro Rogério Schietti, do STJ, ao tratar de erros no reconhecimento de pessoas, foi direto: “Pessoas inocentes estão ficando presas pela irresponsabilidade de profissionais que deveriam honrar o salário que recebem, mas que estão se curvando à preguiça ou à falta de zelo”.
O diagnóstico é preciso, mas expõe um problema estrutural de correção. A revisão criminal, que é o instrumento processual específico para corrigir condenações injustas, é julgada pelos mesmos tribunais que cometeram o erro. Na prática, tribunais ordinários raramente anulam decisões de pares, salvo boas e raras exceções. A corporação protege a corporação. Ninguém quer se indispor para reconhecer o equívoco alheio, mesmo quando uma vida está em jogo.
Diante desse bloqueio institucional, os tribunais superiores assumem papel decisivo. Quando a revisão criminal se torna inviável por solidariedade corporativa, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm o dever de aceitar o Habeas Corpus como substitutivo da revisão. Não é generosidade processual: é garantia da revisibilidade, sem a qual não há Estado de Direito. Como explicar a um inocente que seu caso não pode ser corrigido por uma questão de forma?
Os números provam que isso é possível. Em 2025, o STJ concedeu 234 Habeas Corpus para aplicar jurisprudência sobre reconhecimento pessoal. Se isso ocorre em matéria pacificada, por que não estender a mesma diligência a erros igualmente evidentes? Existe crise de volume nos Tribunais Superiores, mas o jurisdicionado submetido a erro do Estado não pode pagar por ela com sua liberdade.
A legitimidade de um sistema de justiça não se mede pela ausência de falhas, mas pela capacidade de corrigi-las. Quando o formalismo processual se torna barreira à correção do erro, o sistema deixa de servir à justiça e passa a servir apenas a si mesmo.
Thúlio Guilherme Nogueira, advogado criminalista, mestre em Direito Processual pela PUC Minas e especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e sócio o Drummond e Nogueira Advocacia Penal